"A Coreia do Norte é, possivelmente, o
sítio mais estranho do planeta, por isso me senti inclinado a visitá-lo. Embora
o país pareça ordenado à primeira vista, deixa uma impressão profundamente
perturbadora. 'Ordem' é a palavra-chave. Ali nada parece ser espontâneo, tudo
parece robotizado, as pessoas movem-se de um lugar ao outro em filas ordenadas
e ninguém sorri, ninguém se ri. Quando se visita algum país no mundo, a menos
que se trate de um local pejado de turistas, as pessoas sentem curiosidade em
conhecer-te, olham-te com fascínio, tentam aproximar-se. Na Coreia do Norte,
não. Ali tratam-te como se fosses um leproso. Tens hotéis e restaurantes onde
permaneces separado da população e as pessoas tentam manter-se à distância,
evitam contacto visual. Não há crianças a brincar, quase não se vêem animais de
estimação. Para nós, baseados na nossa liberdade de expressão e movimento, uma
visita à Coreia do Norte é sufocante. Não podes ir a lado nenhum sem um guia e
practicamente tudo requer uma permissão. És forçado a 'engolir' o culto de
personalidade ridículo em torno da figura de estado — alguns acreditam que Kim
Il-sung, o primeiro líder da Coreia do Norte, criou o mundo —, os guias nunca
páram de alimentar-te com mais e mais histórias de propaganda que enaltecem a
bravura daquela pequena nação que não se verga perante os imperialistas.
Aprendes que na Coreia do Norte não existem tribunais, juízes, não existem
prisões ou crime. Tampouco existe homossexualidade. Permaneci apenas apenas
quatro dias e foi mais do que suficiente. A dieta monótona de arroz com
'kimchi' (tudo cultivado utilizando excementos humanos como fertilizante)
estava a começar a afectar-me, assim como os guias sempre a dizer-nos quando
dormir, levantar, ocasionalmente fazendo vénias às estátuas de Kim Il-sung e às
do seu filho defunto Kim Jong-il. Christopher Hitchens apelidou o país de 'necrocracia',
uma vez que Kim Il-sung ainda é oficialmente o presidente. Podes fotografar
algumas das suas estátuas, mas o seu corpo volumoso só pode ser retratado de
baixo para cima ou a fotografia será apagada na fronteira ou pelo teu guia, no
local. O país é uma enorme 'Vila Potemkin', onde a felicidade e a prosperidade
são teatralizadas para a tua satisfação e experiência. É como um parque de
diversões que não podes abandonar e que não consegues parar. Algumas vezes a
nossa 'mini-van' (de onde raramente podíamos sair) parava porque um grande
grupo de pessoas decidia 'espontaneamente' começar a dançar música patriótrica.
Víamos então dezenas de pessoas que tinham sido agrupadas para nosso
entretenimento; as mulheres usavam roupas tradicionais, dançavam debaixo do
calor intenso e dois carros acercavam-se, com altifalantes que providenciavam
música. Um homem tinha a camisa mal abotoada e, embora tenha sorrido para a
câmara, o seu corpo malnutrido chamou-me a atenção, tinha as costelas
salientes. Segundo alguns relatórios, um em cada quatro homens é considerado
mentalmente inapto para serviço militar devido a má nutrição... Este
espectáculo foi montado especialmente para nós e isso fez-me sentir mal. O
facto de a Coreia do Norte poder existir neste tipo de condição é, na minha
opinião, um embaraço para todos nós, neste planeta. Fomos autorizados a sair e
a sensação de abandonar a Coreia do Norte foi de êxtase. Podia finalmente,
tomar as minhas próprias decisões. Deixámos para trás milhões de norte-coreanos
presos num gigante campo de concentração, escravizados e humilhados há várias
gerações, chefiados por um homem obeso e sem qualquer esperança de um futuro
melhor. Espero um dia regressar à Coreia do Norte, numa altura em que a
sociedade seja livre, e poder falar com as pessoas de quem fomos apartados,
ouvi-las e contar as suas histórias." Testemunho do fotógrafo Michał
Huniewicz recolhido por Ana Marques Maia (Público)
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